Entrada da Barra do Rio de Janeiro (1835), Johann Moritz Rugendas.

 

EXISTIU UMA INDEPENDÊNCIA DO BRASIL?

Obcecados por falar mal de si mesmos, os brasileiros costumam minimizar um dos acontecimentos mais importantes de sua história

 João Paulo Pimenta

 

Os brasileiros têm uma inclinação por falar mal de si mesmos, de seu país, de sua população, de sua cultura. Nesse meio, acaba sobrando também para sua história. Uma história supostamente desinteressante, sem grandes acontecimentos, pacata e sonolenta, sempre um acordão meio secreto entre poderosos para manter ricos os ricos, e pobres os pobres. Nem uma independência digna desse nome o Brasil teria tido!

É certo que nem todo mundo pensa assim e sempre haverá honrosas exceções. Principalmente os brasileiros que não só se interessam por sua história, mas ainda procuram estudá-la com seriedade e rigor. Mas também é certo que nossos mitos nacionais são fortes, estão espalhados por toda a parte, se alimentam de desinformações (e comemorações) e acabam por confundir muita gente. Dentre esses mitos, está o de nossa não-independência.

Existiu, sim, uma independência do Brasil e fazer essa afirmação não quer dizer que este autor esteja elogiando nosso país ou nossa história. Menos ainda que ele goste de tediosas comemorações cívicas oficiais, acredite em heróis ou admire grandes feitos militares. Quer dizer apenas que, após estudar o tema, ele tem quatro coisas a dizer.

Primeira: em 1822, o Brasil começou a se separar de Portugal e isso não aconteceu de repente. Foi parte de um processo mais longo que, em alguns aspectos, começou em fins do século XVIII e, em outros, se completou nos primeiros vinte ou trinta primeiros anos do XIX. Até 1822, Portugal e Brasil tinham sido parte daquele enorme Império português que, em 1815, tinha recebido um novo e pomposo nome: Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves. Quando o Brasil se separou, esse Reino Unido deixou de existir e o Brasil começou uma vida própria.

É certo que essa separação não foi total, completa e absoluta. Em muitos sentidos, o Brasil continuou a ser um pouco “português”. Em outros sentidos, também um pouco “colônia”. Mas isso é absolutamente normal. Nenhum país independente vive completamente livre de seu passado. Nenhum país é só novidade ou superação.

Segunda: quando se tornou independente, o Brasil foi virando, aos poucos, um Estado e uma nação soberanos – duas coisas que não existiam antes e que existem até hoje. Colônia de Portugal ele já não era fazia tempo: desde pelo menos 1808, quando a corte portuguesa veio morar no Brasil. Em 1815, o Brasil tinha virado um reino da mesma importância que Portugal. Mas a partir de 1822, outros países do mundo foram reconhecendo o Brasil como sendo mais um deles, como um membro de um sistema de relações internacionais sem o qual um país não pode – é assim até hoje – ser verdadeiramente independente.

Ao contrário do que se costuma pensar, em 1822 o Brasil não deixou de ser colônia de Portugal – como já disse, isso ocorreu antes – para se tornar colônia da Grã-Bretanha ou dos Estados Unidos. Simplesmente, como qualquer país independente, o Brasil teve que se adaptar ao sistema internacional do qual ele passou a fazer parte.

Terceira: como tudo na história, as palavras e seus sentidos estão sempre mudando. Hoje em dia, a palavra independência pode significar, dentre outras coisas, poder, prosperidade, bem-estar, liberdade. Mas em 1822, ela queria dizer principalmente capacidade de tomada de decisão própria, sem ter que seguir as decisões de outro. E a independência do Brasil foi exatamente isso: um grupo bastante amplo de pessoas decidiu formar um novo governo e – aos poucos – um novo Estado e uma nova nação que não seriam mais portugueses, mas brasileiros. E fizeram isso no meio de muitas disputas, conflitos, revoluções e guerras (isso mesmo: o Brasil teve suas revoluções e guerras, e nossa independência juntou as duas coisas).

Quarta: a independência também foi uma mistura de outras independências menores, um monte de situações em que pessoas quiseram tomar suas próprias decisões de maneira livre, em defesa de interesses que nem sempre eram comuns a outras: ricos, pobres, brancos, pardos, pretos, índios, homens, mulheres… Alguns grupos perderam, outros ganharam, uns são hoje mais conhecidos do que outros, mas todos fizeram parte de um mesmo processo histórico e que não aconteceu em um só lugar, mas em muitas regiões daquele mosaico de lugares diferentes que era o Brasil de 1822.

Talvez a Independência não tenha sido aquilo que o leitor imaginasse. Certamente, ela não foi o que muitos de seus participantes quiseram que ela fosse. Tampouco foi exatamente o que dela fizeram governos, instituições, políticos e outros grupos específicos que, desde 1822, vêm comemorando, distorcendo e usando politicamente a História a seu bel-prazer, segundo seus interesses privados – no Brasil atual, inclusive. Todos esses desconhecimentos, frustrações e manipulações também contam suas histórias particulares, sem dúvida. E todos juntos formam a história da Independência, de sua memória e de sua atualidade.

Não só como História, mas também como memória, a Independência existiu. E é assim que ela continuará a existir, hoje e amanhã, no nosso Brasil. Gostemos dele ou não.

 

Saiba mais

JANCSÓ, István (org.). Independência: história e historiografia. São Paulo: Hucitec, 2005.

LYRA, Maria de Lourdes Viana. O império em construção: Primeiro Reinado e Regências. São Paulo: Atual, 2000.

MOREL, Marco. Frei Caneca: entre Marília e a pátria. Rio de Janeiro: FGV, 2000.

OLIVEIRA, Cecília Helena de Salles. A Independência e a construção do império, 1750-1824. São Paulo: Atual, 1995.

 

 

 

 

 

 

 

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Ivana Frasquet
Ivana Frasquet
2 anos atrás

Gracias por esta magnífica síntesis. Es curioso saber que la construcción ideológica de la independencia en Brasil ha negado la propia existencia de esa, mientras en otros países latinoamericanos ha sido casi al contrario; se han construido independencias aún cuando y donde no las hubo. Abrazos.

Sérgio Buarque de Gusmão
Sérgio Buarque de Gusmão
2 anos atrás

Boa, muito boa. O esporte nacional, para usar uma comparação `altura do “debate”, é a do copo meio vazio…A Independência, a Abolição, a República foram todas pela metade…Não se valoriza o que deu certo.

Rodrigo Oliveira
Rodrigo Oliveira
2 anos atrás

Muito bom o texto. Revigora algumas ideias com um toque de atualidade. Essa é a função da história relembrar e refletir.

Victor Pastore
Victor Pastore
2 anos atrás

Muito bom. Achei o texto bastante didático, com linguagem acessível… possível de ser usado em sala de aula, até mesmo no fundamental 2 com uma boa mediação do professor.

Last edited 2 anos atrás by Victor Pastore
Francisco Pereira
Francisco Pereira
2 anos atrás

Recordar um fato histórico e do ponto de vista de especialistas,isto é, de historiadores é muito importante.

Cláudia Maia
Cláudia Maia
2 anos atrás

Que texto ótimo, objetivo, simples e que nos faz pensar bastante! Levarei para trabalhar com os alunos certamente!!!

Jucieldo Alexandre
Jucieldo Alexandre
2 anos atrás

Excelente iniciativa da Anpuh.

CLÁUDIO MESSIAS LOPES
CLÁUDIO MESSIAS LOPES
2 anos atrás

Muito bom este texto ,a história do Brasil, olhando para os detalhes de sua trajetória ,ao mesmo tempo que é interessante também e complexa, devido a forma da sua construções ao longo dos tempo..

Last edited 2 anos atrás by CLÁUDIO MESSIAS LOPES
Pedro Marcos Mansour Andes
Pedro Marcos Mansour Andes
2 anos atrás

Parabéns pelo texto professor João Paulo Pimenta. Nos trouxe questões centrais do debate da emancipação política brasileira. Excelente reflexão muito didática. Material excelente para usar em sala de aula para iniciar os debates sobre independência do Brasil.

Célia Regina da Silveira
Célia Regina da Silveira
2 anos atrás

Paulo Pimenta traz análises geniais sobre as independências do Brasil, as quais contribuem para que alguns historiadores deixem de falar para seus alunos e em entrevistas de que não mudou nada no Brasil. Nessa direção,vi uma professora de universidade anos atrás, falando da Independência do Brasil como não-independência. Para quem estuda sabe o quão complexo é o tema, seja vista num peridizaçao longa, média e da conjuntura (que foi um momento tão inédito efervescente politicamente). Parabéns pela iniciativa da Anpuh.

Walkiria
Walkiria
1 ano atrás

Excelente reflexão! Agradeço à ANPUH e aos autores e autoras que estão nos brindando com esses textos magníficos. Me chamo Walkiria, sou professora do Colégio de Aplicação João XXIII, da UFJF (Juiz de Fora, MG) e vou utilizar todos os textos deste blog para trabalhar a História do Brasil com meus/minhas estudantes de 7° ano do Ensino Fundamental, neste segundo semestre de 2022. Este primeiro artigo, já será a base de uma atividade avaliativa que eles e elas farão essa semana, sobre a Formação dos Estados Nacionais Modernos, a partir de uma reflexão sobre a formação do Estado Nacional Brasileiro. Abraços e, novamente, muito obrigada!